DECIFRA-ME OU DEVORO-TE

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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Ana Cristina César: uma doçura venenosa de tão funda.

Ana C. como assinava, está entre os principais poetas representantes da literatura dita marginal, junto com Paulo Leminski, Cacaso, Francisco Alvin e Waly Salomão. Foi uma poetisa que inovou, escreveu de forma inexistente, foi como Frida Khalo, assim como esta se autoretratou em sua pintura, Ana se retratou em suas poesias, em seus poemas- prosa, escreveu em primeira pessoa, sua obra é confessional, em palavras poéticas questionou-se: “Pergunto aqui se sou louca/ quem quer saberá dizer/ Pergunto mais, se sou sã/ E ainda mais, se sou eu/ Que uso o viés pra amar/ E finjo fingir que finjo/ Adorar o fingimento/ Fingindo que sou fingida/ Pergunto aqui meus senhores/ Quem é a loura donzela/ Que se chama Ana Cristina/ E que se diz ser alguém/ É um fenômeno mor/ ou é um lapso sutil?”, e poeticamente se afirmou: “Forma sem norma/ defesa cotidiana/ conteúdo tudo/ abranges uma Ana.” Enfim Ana C. traduziu-se em poesia, transformou-se em arte.

Nasceu em 2 de janeiro de 1952, no Rio de Janeiro, era de família culta e de classe média, desde pequena sentia uma forte atração pela literatura, mesmo sem ser alfabetizada, com apenas quatro anos já recitava poemas para que adultos escrevessem, escrevia compulsivamente, “escrevo in loco, sem literatura”. Foi apaixonada por Drummond, Pessoa, Baudelaire, mas o que exerceu mais influência sobre a escritora carioca foi a literatura inglesa de Emily Dickinson, Sylvia Plath e Katherine Mansfield.

Sua vida foi voltada toda para a arte, para os estudos, estudou literatura, tradução e cinema, formou-se em Letras na PUC do Rio de Janeiro, fez mestrado em comunicação na UFRJ, e mestrado em tradução na Inglaterra na universidade de Essex.

Escreveu para jornais, revistas, foi jornalista, deu aulas e publicou independente seus livros: Cenas de Abril, Correspondências Completas e Literatura não é documento, mais tarde os dois primeiros reunidos, junto com Luvas de pelica no livro A teus pés, pela editora Ática, e postumamente foram lançados: Inéditos e dispersos e Crítica e tradução.

Na leitura de seus poemas vemos sua imagem, ela embriagou-se da liberdade da forma e misturou prosa com poesia, Armando Freitas Filho, escritor e amigo intimo de Ana diz no prefácio de A teus pés: “A prioridade volta a ser pelo semântico, e se conteúdo e forma são mesmo dissociáveis, aquele é que determina esta. O resultado que daí advém é o de um texto quase sempre na primeira pessoa, confessional, que está próximo do formato do ´querido diário` adolescente, que dialoga com um interlocutor mutante, misto de pessoa e personagem.”

A autora de A teus pés ficou conhecida mundialmente, principalmente por fazer parte do livro 26 Poetas Hoje, de Heloísa Buarque de Holanda, a qual foi professora da poetisa. A crítica sobre a vida e a obra da escritora ainda é muito escassa, porém cada vez mais ela está se tornando centro dos estudos da literatura marginal, pois como disse Mariana Várzea em seu ensaio intitulado “Ana Cristina César ou o vôo da águia”: “Ana C. foi a própria encarnação da modernidade. Soube ser feminina sem ser feminista, sem estar ideologicamente presa a nada. Talvez por isso, tenha morrido cedo, fazendo sobre nossa terra uma passagem permanente. O lugar que ocupa como poeta é na linha do horizonte - virtual e veloz. Seu verso, que pertenceu à vertente cultivada da geração que apareceu em 70, é, hoje, a pedra fundamental de toda a poesia que se quer nova.” E ainda hoje são encontrados escritos inéditos da poetisa.

Sua poesia é forte, cortante, as palavras que utiliza são suculenta, escorregadias: lubrificadas, “Olho muito tempo o corpo de um poema/ até perder de vista o que não seja corpo/ e sentir separado dentre os dentes/ um filete de sangue/ nas gengivas.” Manuel Ricardo de Lima escreveu sobre a poetisa no caderno Vida e Arte do Jornal O Povo em 21/07/1998: “Ana escreveu uma poesia que dialoga intensivamente com a página em que ela está sendo escrita, uma espécie de andamento musical, quase síncope.” Ela procurou atingir o impossível, Armando Freitas filho disse que Ana “queria pegar o pássaro sem interromper seu vôo”, tentou chegar aonde não se chega em vida e portanto resolveu sair de cena deste mundo cedo para poder “perceber o invislumbrável no levíssimo que sobrevoava”, e em 29 de outubro de 1983 Ana se suicidou, criou asas para voar, como escreveu “eu não sabia que virar pelo avesso era uma experiência mortal”, a morte foi a solução para sua realização, para suas dúvidas, para seu vôo: “Não verei mais a lua de perto/ Talvez me irrite pisar no impisável/ E a morte deve ser gostosa/ Recheada com marchemélou/ Uma lâmpada queimada me contempla/ Eu dentro do templo chuto o tempo/ Uma só palavra me delineia/ VORAZ/ E em breve a sombra se dilui,/ Se perde o anjo.” Essa foi Ana C. uma mulher que soube tornar-se arte em pessoa, e que “ a ponto de partir, já sei/ que nossos olhos/ sorriam para sempre/ na distância./ Parece pouco?/ Chão de sal grosso, e ouro que se racha./ A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância/ lentes escuríssimas sob os pilotis.” Sua poesia se mistura com sangue quente, é ardente e devoradora, ler sua arte literária é tornar-se uma Ana.

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